A Ceia do Senhor, conhecida também como Eucaristia, Santa Ceia ou Comunhão, é um dos ritos centrais da vida cristã. Mais do que um símbolo, trata-se de uma prática plena de sentidos: rememorar Jesus Cristo, afirmar a comunhão entre os(as) irmãos(ãs) e selar a pertença à comunidade da fé. Mas o que significava essa prática nas origens do cristianismo? Como era celebrada, vivida e interpretada em contextos sociais e culturais distintos do nosso?
No livro Corinto e a refeição eucarística, Danielle Lucy Bósio Frederico oferece uma análise instigante sobre essas questões ao investigar a dimensão cultural, espacial e simbólica da Ceia nas primeiras comunidades cristãs, especialmente na cidade de Corinto, no primeiro século da era comum. A obra, que resulta de sua pesquisa doutoral, propõe um olhar interdisciplinar sobre a Eucaristia, reunindo exegese bíblica, antropologia da comida, arqueologia do cotidiano e análise dos espaços urbanos. Com escrita acessível e rigor acadêmico, a autora convida o leitor e a leitora a redescobrirem a Ceia como uma prática que traz consigo códigos culturais e sociais, profundamente situada em seu tempo.
Estrutura do livro
O ponto de partida da obra é 1Coríntios 11.17-34, passagem em que o apóstolo Paulo repreende a comunidade de Corinto pelo modo como vinha celebrando a refeição eucarística. Tradicionalmente interpretado em perspectiva litúrgica ou normativa, o texto é relido por Frederico como um espelho das tensões sociais e culturais da cidade antiga. Em Corinto, marcada por hierarquias rígidas, a mesa do Senhor refletia – e muitas vezes reproduzia – desigualdades sociais. A refeição, que deveria ser um gesto de comunhão, estava se transformando em um espaço de exclusão.
Na primeira parte do livro, são apresentados os pressupostos do que a autora denomina de “antropologia da comida”, demonstrando como os hábitos alimentares portam e transportam significados sociais e simbólicos. O que comemos, como comemos e com quem comemos dizem muito sobre identidade, status e pertença. No mundo greco-romano, os banquetes eram eventos de prestígio, e a organização do espaço à mesa comunicava papéis sociais. Na leitura de Frederico, a Ceia cristã, inserida nesse universo simbólico, pode ser compreendida também como um ato de comunicação social e não apenas como rito religioso.
Na segunda parte, a autora discute os espaços nos quais a Eucaristia era celebrada. Questionando a ideia de que as primeiras comunidades se reuniam exclusivamente em casas amplas e abastadas (as chamadas domus), ela sugere que muitos cristãos, provavelmente a maioria deles, viviam em construções multifamiliares modestas (chamadas insula) e que outros espaços, tais como tavernas, pátios, lojas e até mesmo locais alugados, também podem ter servido para encontros comunitários. Com isso, a autora propõe uma “hermenêutica dos espaços”, ou seja, ler a Ceia do Senhor à luz dos ambientes em que era realizada, entendendo como a configuração espacial influenciava a experiência comunitária.
A terceira parte do livro aproxima a Eucaristia das refeições funerárias greco-romanas, nas quais vivos e mortos eram simbolicamente reunidos em banquetes junto aos túmulos. Na antiga Corinto, essas práticas são atestadas por dados arqueológicos e fontes literárias. A partir dessa matriz cultural, o apóstolo Paulo ressignifica o gesto da Ceia à luz da entrega de Jesus, transformando a refeição em um memorial de esperança, partilha e fidelidade. A Eucaristia torna-se, assim, um gesto de continuidade simbólica com a vida e os ensinamentos de Cristo, um modo de manter viva a sua memória entre os irmãos e irmãs na fé.
Tensão interna
Um dos pontos altos da obra está na análise da tensão interna na comunidade de Corinto. Alguns membros comiam em excesso e se embriagavam, enquanto outros passavam fome: “porque cada um come sua própria ceia sem esperar pelos outros. Assim, enquanto um fica com fome, outro se embriaga. Será que vocês não têm casa onde comer e beber? Ou desprezam a igreja de Deus e humilham os que nada têm? Que lhes direi? Eu os elogiarei por isso? Certamente que não!” (1Co 11.21-22). A autora mostra que o problema, mais do que litúrgico, era também de ordem social, estrutural. As práticas da mesa estavam reproduzindo as desigualdades do mundo romano, e Paulo, ao intervir, propunha uma reversão desse quadro: a mesa deveria expressar igualdade, partilha e reconhecimento do outro. Nesse sentido, o ato de comer juntos era performativo, pois comunicava e moldava a identidade da comunidade. O pão e o vinho remetiam ao corpo e sangue de Cristo, mas também expressam, concretamente, a relação entre os membros da igreja.
O livro se encerra com um apêndice inesperado e saboroso: o “Guia Gastronômico do Mediterrâneo Antigo”, atribuído a Arquéstrato (séc. 4 a.C.). Com ele, o leitor e a leitora são transportados à cozinha, ao mercado e à mesa dos povos antigos, ampliando a imersão no universo alimentar que contextualiza a prática da Ceia. Esse apêndice funciona quase como uma janela sensorial, permitindo compreender que o partir do pão era, também, uma experiência cultural compartilhada.
Com Corinto e a refeição eucarística, Danielle Lucy Bósio Frederico oferece uma contribuição relevante para os estudos bíblicos e teológicos, mas também para a reflexão pastoral e comunitária. Ao recuperar a materialidade, a espacialidade e a cultura da mesa cristã primitiva, a autora nos convida a repensar nossas próprias práticas de comunhão. O livro mostra que, desde os seus primórdios, a Ceia do Senhor é mais do que uma recordação do passado: ela é um ato de afirmação comunitária, um rito de identidade e um gesto de esperança que continua a interpelar a vida cristã até hoje; é lugar de encontro, cuidado, pertença e memória viva.
DESCRIÇÃO BIBLIOGRÁFICA
FREDERICO, Danielle Lucy Bósio. Corinto e a refeição eucarística: marca identitária, pertença religiosa e outras decodificações. São Paulo: Ambigrama, 2024. 190p.







