Vivemos numa sociedade marcada por uma visão adultocêntrica — ou seja, organizada a partir do mundo adulto.
As igrejas não estão distantes dessa realidade. Podemos observar esse processo na forma como organizamos nosso culto, ensinamos, tomamos decisões e nos relacionamos com as crianças. Quase sempre, elas são vistas como alguém “a ser cuidada”, “a ser ensinada” ou “a ser preparada para o futuro”.
Esse adultocentrismo nos leva a calar ou a subestimar a espiritualidade das crianças. Suas orações são tratadas como “fofas;” suas perguntas como “imaturas;” e suas percepções como “precoces demais” ou “ingênuas demais”.
E se o Espírito Santo quiser usar as crianças para nos ensinar algo novo? E se a igreja precisar quebrar paradigmas para voltar a ouvir Deus na sensibilidade sincera dos pequenos?
Em Lucas 10.21, Jesus exulta no Espírito e agradece ao Pai por ter ocultado certas coisas dos sábios e instruídos, e as revelado aos pequeninos: “Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas dos sábios e instruídos e as revelaste aos pequeninos”.
Jesus estava a caminho de Jerusalém, quando fez essa oração Tinha realizado milagres, caminhava há algum tempo com seus discípulos. Andava às margens, cuidando daqueles que eram apagados pela sociedade: os doentes, as mulheres, as crianças. E, nessa oração, Ele reconhece a vontade do Pai de se revelar àqueles que se mostram abertos e disponíveis à mensagem, incluindo as crianças.
Por que nós, adultos, temos tanta dificuldade em compreender que o Espírito Santo fala aos pequenos? E mais: que eles podem ser instrumentos nas mãos do Senhor?
A história de Samuel é um retrato de como Deus fala por meio das crianças. Samuel ainda era um menino quando ouviu a voz do Senhor pela primeira vez. Ele precisou do apoio de um adulto para compreender o que estava acontecendo. Mas, assim que entendeu, respondeu prontamente: “Fala, Senhor, pois o teu servo ouve”,
Essa resposta se tornou o início de uma nova etapa na história de Israel. Samuel não apenas ouviu; ele foi instrumento profético.
A história de Samuel nos ajuda a abrir os olhos para uma verdade muitas vezes esquecida: as crianças têm sensibilidade espiritual, capacidade de escuta e disponibilidade para responder ao chamado de Deus.
No entanto, para reconhecer isso, a igreja precisa ampliar sua visão e reformular sua forma de se relacionar com a infância.
É nesse contexto que surge a Teologia da Criança, uma proposta teológica que não se limita a refletir sobre o ministério infantil, mas que busca enxergar a própria fé cristã a partir da presença da criança junto a Jesus.
A criança deixa de ser apenas alvo de cuidado e evangelização para se tornar uma lente teológica, uma voz que precisa ser ouvida.
Essa abordagem encontra respaldo nos textos de Sofia Cavalletti, biblista italiana e criadora da Catequese do Bom Pastor.
Em sua obra “O Potencial Religioso da Criança”, Cavalletti afirma que a criança tem uma abertura natural ao sagrado e é capaz de experimentar, com profundidade e simplicidade, a presença de Deus.
Outro recurso valioso para quem deseja aprofundar esses temas é o livro “Uma Criança os Guiará — Por uma Teologia da Criança”, organizado por Klênia Fassoni, Lissânder Dias e Welinton Pereira.
A coletânea reúne artigos que propõem uma reflexão profunda sobre o papel das crianças na teologia e na prática da fé cristã. Atualmente, está disponível gratuitamente em PDF pela Editora Ultimato.
Leituras como essa reforçam o que já podemos perceber no cotidiano da fé: que a presença das crianças nos interpela, nos ensina e nos convida a uma nova forma de crer.
Nós, adultos, muitas vezes perdemos a capacidade de nos encantar com o mistério. Acostumados com o controle, a lógica e o imediatismo, endurecemos o coração diante da simplicidade da fé.
Mas as crianças ainda sabem ouvir. Ainda se abrem com sinceridade. E é justamente por isso que o Espírito Santo continua a falar por meio delas.
Precisamos aprender a silenciar o barulho das certezas adultas para escutar o que o Espírito Santo tem a nos dizer. Essas verdades podem ser reveladas por meio das nossas crianças — e precisamos estar atentos. Como escreveu Sofia Cavalletti: “A criança tem uma relação viva e direta com Deus, que não precisa ser despertada, mas cultivada com respeito e escuta”.
Cultivemos essa escuta! Sejamos comunidades que não apenas ensinam as crianças, mas aprendem com elas! Não as empurremos para um “dia futuro”, mas as reconheçamos como presença ativa do Reino no hoje.







