A data foi cuidadosamente escolhida: 31 de outubro era um dia muito comemorado. Peregrinos em massa eram atraídos para comemorar o Dia de Todos os Santos, que tinha uma igreja com esse nome em Wittemberg, onde a porta de entrada era utilizada para deixar mensagens e avisos. Exatamente ali, ao meio-dia, Martinho Lutero afixou as suas 95 teses.
Os tempos não eram de cristianismo, mas dominante catolicismo. Lutero, monge da Ordem de Santo Agostinho, era letrado e culto, contraste com o que se poderia obter apenas pelas então inacessíveis Sagradas Escrituras. Privilégio dos clérigos, a religião era manipulada à semelhança dos vendilhões do templo, com uma vergonhosa venda indulgências, preço cobrado para obter perdão de pecados, além de pedaços de madeira, como se fossem da Arca de Noé ou do presépio de Jesus.
Os escárnios atingiram tamanha proporção que pensamentos de repulsa começaram a surgir. As ideias de Lutero tinham adeptos como Erasmo de Roterdam, teólogo, filósofo e humanista, um dos expoentes do Renascimento. À época, intelectuais comentavam que Erasmo botou o ovo que Lutero chocou. A religião estava em estado deplorável.
Então Lutero aparece.
Quem foi Lutero
O reformador nasceu um dia antes do dia de São Martinho, daí o seu nome. Aos 18 anos, saiu da sua cidade, Eisleben, e foi para Erfurt a fim de estudar num mosteiro, onde ficaria durante três anos. Descobriu e começou a ler, pela primeira vez, um exemplar da Bíblia. Encantou-se com a história de Ana e Samuel. Quis muito mais. Naquele período, foi fundada em Wittemberg uma nova universidade, onde se tornaria doutor em teologia. Tornou-se opositor acadêmico de Aristóteles, o filósofo grego, e Tomás de Aquino, considerado doutor da igreja, fundidos na prestigiada cultura aristotélica-tomista. Achava, com razão, que a Palavra de Deus havia sido abandonada.
Estava no auge o mercantilismo comandado por João Tezel, membro de uma outra Ordem, a dos dominicanos, que vendia indulgências como se fossem salvação das almas, tanto de vivos como de mortos. Levava consigo enorme cruz vermelha de madeira, como se ela tivesse a mesma importância daquela em que Jesus foi crucificado. Escândalos como esse abriram caminho para a Reforma.
O conteúdo das 95 teses espalhou-se rapidamente. Na 27ª, chamava os mercadores (“que religião é esta”?) de “pregadores da loucura”, pois prometiam que no mesmo momento em que o dinheiro caísse no cofre, a alma do comprador voaria para o purgatório. Na 35ª, acusava que era doutrina anticristã. Argumentava que comprar não é arrepender-se. Na 52ª, afirmou que a prática era “embusteira e mentirosa”.
Erasmo de Roterdam, respeitado filósofo, aprovou os argumentos, mas aconselhou Lutero a ter mais “ponderação e prudência”. Tezel e os membros da sua Ordem ficaram furiosos. Lutero identificava as teses “proposições”. Tezel procurou rechaçá-las com “contra-proposição”. Mandou erguer um púlpito e um ameaçador cadafalso, onde as teses foram queimadas como heréticas.
“Não é seguro para o cristão falar contra a própria consciência”
Lutero foi convocado para ir a Roma e retratar-se. Decidiu-se que haveria uma “discussão”, debate sobre as teses, confronto das doutrinárias tradições humanas com as Escrituras. O palco seria a Dieta, na cidade de Worms. Um tipo de Concílio. A igreja seria representada por Johann Eck, nada menos do que o consultor teológico no Concílio de Trento. Eck insistiu na retratação. Lutero rotulou a disputa de “a guerra do Senhor”. Fixou-se num ponto: se estivesse enganado, que provassem pela Bíblia. Somente assim recuaria. A argumentação foi bem sólida: “não é seguro para o cristão falar contra a própria consciência”. Eck tenou, mas não conseguiu contrariá-lo.
Quem venceu?
O árbitro foi o jovem imperador Carlos V, que a princípio, achou que Lutero falava com “coração intrépido e inabalável coragem”. Mas preferiu decidir que Lutero estava “fora da lei” e se tornado “herege notório”. O papa Leão X deu o golpe final, com a bula pontifícia Exsurge Domine (Levanta-te, Senhor”). Lutero excomungado: o papa determinou que Lutero era “escravo de mente depravada” e por isso estava em “perpétua condenação”. Risco da fogueira – como já havia acontecido com João Huss, precursor da Reforma. Não foi assim, porém, que o ameaçado Lutero morreu, e sim de causas naturais, aos 62 anos de idade. Refugiou-se no castelo de Wartburg, sob a proteção de Frederico III, onde para não ser reconhecido deixou a barba crescer, raspou os cabelos e compôs o hino Castelo Forte, inspirado no 46º dos Salmos.
A Igreja Católica defendeu-se com a chamada Contrarreforma, fixando suas novas bases, pavimentadas no Concílio de Trento. Não adiantaria.
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