Teologia de guerra ou Evangelho encarnacional?

Teólogo reformado malaio-canadense Shiao Chong destaca espiritualidade do “Deus conosco” e alerta para riscos de um cristianismo combativo

No dia 8 de novembro de 2025, o teólogo e educador Shiao Chong, ex-editor da revista The Banner (O Pendão), da Christian Reformed Church in North America (CRCNA), apresentou a conferência principal do All Canada Church Summit, encontro que reuniu lideranças cristãs de diversas províncias canadenses. Em sua fala, intitulada “God With Us: A Christianity Canada Needs” (Deus conosco: O cristianismo que o Canadá precisa), Chong propôs uma visão renovada para o testemunho cristão no país, fundamentada na doutrina da Encarnação e no significado profundo do nome “Emanuel: Deus conosco”.

Shiao Chong

A partir de uma análise crítica do cenário religioso norte-americano, Chong alertou para o avanço de um cristianismo marcado pela postura do contra — combativo, hostil e profundamente influenciado pela guerra cultural. Esse modelo, segundo ele, tende a produzir mais afastamento do que aproximação, transformando a fé cristã em instrumento de disputa social e política. “Não há ódio como o amor cristão”*, comentou, lembrando como muitos têm percebido a fé evangélica por causa de discursos agressivos praticados em nome de Deus.

A conferência foi promovida por líderes da Christian Reformed Church in North America (CRCNA), denominação reformada de origem holandesa, presente sobretudo no Canadá e nos Estados Unidos. Essa denominação mantém uma identidade reformada histórica, unindo fortes compromissos doutrinários como o casamento entre homem e mulher, com uma ênfase consistente em responsabilidade social, cuidado da criação e promoção da reconciliação, aspectos que podem se expressar de maneiras distintas conforme o contexto de cada comunidade local.

 

Seis marcas de uma espiritualidade com presença

Chong apresentou seis elementos que, em sua avaliação, devem orientar uma presença cristã fiel e encarnacional no Canadá:

  1. Esperança oferecida — reconhecer e apontar os sinais da presença de Deus na história, no presente e nas promessas futuras.
  2. Evitar causar danos — abandonar linguagens e espiritualidades que ferem; rejeitar expressões como “amor duro” ou “amar o pecador, odiar o pecado”, frequentemente usadas como justificativa para julgamentos.
  3. Como fazemos importa — os meios devem refletir o espírito do evangelho; fins cristãos não justificam métodos não cristãos.
  4. Ênfase holística — unir palavra e ação; integrar intelecto, imaginação, afetos e práticas.
  5. Coração alinhado com Deus — formar hábitos que moldem não apenas o pensamento, mas também os desejos e os afetos dos discípulos.
  6. Humildade — reconhecer limitações, escutar mais, aprender com o outro e abandonar o tom de certeza.

Segundo o Chong, essa postura transforma três dimensões da vida cristã: a espiritual, centrada na vulnerabilidade diante de Deus; a organizacional, baseada na colaboração e no compartilhamento de poder; e a missional, que deixa de ser “para” e passa a ser “com”.

 

A discussão ecoa no Brasil: entre a “teologia de guerra” e a espiritualidade encarnacional

Pr. Anderson Silva

As reflexões apresentadas por Chong dialogam diretamente com debates recentes no evangelicalismo brasileiro. Nas últimas semanas, o Pr. Anderson Silva, figura influente nas redes sociais, voltou a defender publicamente que o protestantismo seria, por essência, uma “teologia de guerra” — afirmando que o cristão deveria assumir uma postura combativa contra inimigos espirituais e culturais.

Esse tipo de discurso, embora parta de imagens bíblicas de batalha espiritual, tem sido amplamente associado à guerra cultural que toma conta de parte do cenário evangélico nacional. Teólogos e analistas têm alertado que, quando a fé se organiza em torno da retórica da guerra, a comunidade cristã corre o risco de trocar o discipulado pela militância ideológica, reduzindo o próximo a inimigo a ser vencido. Obras recentes, como Igreja Polarizada de Gutierres Fernandes Siqueira, da Igreja Assembleia de Deus têm analisado esse fenômeno e seus efeitos sobre a espiritualidade, a ética e a vida comunitária.

 

Teólogos e analistas têm alertado que, quando a fé se organiza em torno da retórica da guerra, a comunidade cristã corre o risco de trocar o discipulado pela militância ideológica, reduzindo o próximo a inimigo a ser vencido.

 

Nesse contexto, a proposta apresentada no Canadá — uma fé formada pelo “com” e não pelo “contra” — oferece um contraponto necessário para o Brasil. Em vez de reforçar trincheiras, a espiritualidade encarnacional convida o povo de Deus a se aproximar, dialogar e servir, em consonância com o próprio ministério de Jesus.

 

Igreja militante e encarnacional

A tradição reformada sempre utilizou a expressão “igreja militante” para descrever o povo de Deus que peregrina neste mundo em meio a lutas. Essa militância, porém, não se refere a uma guerra cultural ou a inimigos humanos, mas à batalha espiritual e ética contra o pecado, a injustiça e tudo aquilo que fere a vida. Trata-se de uma metáfora clássica da fé cristã, herdada da patrística e preservada pela teologia reformada, que chama a igreja à perseverança, santidade e fidelidade — nunca à hostilidade social.

Por isso, teólogos reformados de diferentes épocas levantaram fortes críticas quando essa linguagem de combate foi distorcida para justificar projetos humanos de poder ou ideologias nacionalistas. No contexto das guerras mundiais, Karl Barth, teólogo reformado, se opôs frontalmente à teologia que justificava a guerra alemã como vontade de Deus, considerando isso uma distorção grave da fé cristã. Essa crítica tomou forma pública na Declaração de Barmen (1934), documento no qual Barth e a Igreja Confessante rejeitaram qualquer tentativa de subordinar o evangelho à ideologia nacional, afirmando que Jesus Cristo — e não o Estado ou um líder político — é a única Palavra de Deus a ser ouvida, crida e obedecida.

Assim, embora a metáfora da “Igreja militante” tenha lugar legítimo no vocabulário reformado, a própria tradição insiste que o combate cristão não é contra pessoas, grupos ou culturas, mas contra tudo aquilo que destrói a vida criada por Deus. Qualquer uso da linguagem bélica que legitime intolerância, polarização ou violência deixa de ser reformado para se tornar exatamente aquilo que a Reforma sempre combateu: uma idolatria travestida de fé.

 

Um chamado a remar juntos

Ao final de sua exposição, Chong recorreu a uma metáfora marcante: a igreja como um grupo que deixa um “acampamento” conhecido e, apesar da dor, caminha para um novo horizonte. A esperança, afirmou, está justamente no movimento conjunto: “E se Deus estiver usando este movimento para iniciar algo novo para o Canadá?”

A recepção calorosa ao discurso indicou que muitos líderes veem nesse caminho — humilde, encarnacional e comunitário — uma das expressões mais fiéis do evangelho para os tempos atuais.

 

Você pode assistir à palestra “God With Us: A Christianity Canada Needs” pelo YouTube, AQUI.

 

* Frase irônica estampada em camisetas no Canadá, criticando os cristãos.

 

Foto: Pixabay.

Foto de Rev. Eugênio Anunciação

Rev. Eugênio Anunciação

Diretor Executivo da Vida & Caminho

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Uma resposta

  1. Vale muito a pena assistir à palestra do Chong, cujo link está disponível nessa reportagem. Mesmo ela sendo em inglês, é possível colocar legendas em português para quem não é habituado à língua inglesa. Uma reflexão profunda e ao mesmo tempo esperançosa dos nossos dias.

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