Educação com carinho

ENTREVISTA: A importância da afetividade no papel da igreja em ensinar as crianças

Nesta edição, celebramos o Dia da Escola Dominical, uma data que nos convida a refletir sobre o papel formador da igreja no cuidado com as novas gerações. O tema da edição — “Chamados à Vida” — destaca a missão cristã de promover vida plena, digna e saudável em todas as suas dimensões: espiritual, emocional, comunitária e educativa.

Neste contexto, entrevistamos a Presbítera Marlene Alexandroff, da 1ª IPI de São Caetano, SP, autora do livro “Afetividade e Linguagens Expressivas na Educação Infantil”. Com ampla experiência na área da educação, Marlene compartilha conosco reflexões preciosas sobre como a afetividade, a escuta e as expressões criativas são caminhos para o bem-estar da criança — e como a igreja pode ser um espaço seguro e estimulante para esse desenvolvimento.

A entrevista pretende inspirar professores, lideranças da Escola Dominical e famílias a pensarem a educação infantil não apenas como transmissão de conteúdo, mas como um chamado à vida, ao cuidado mútuo e à construção do bem-estar coletivo.

 

O título do seu livro já aponta para um eixo fundamental: a afetividade. Por que ela é tão central no processo educativo, especialmente na infância?

Meu livro esta alicerçado na teoria de Henri Wallon, psicólogo francês. Ele destaca que precisamos ver a criança de modo integral, isto é, nos aspectos afetivos, motores e cognitivos, sempre mediados pelo social. Esses aspectos estão entrelaçados e um se reflete no outro. O autor dá uma grande destaque à afetividade e à emoção no desenvolvimento infantil porque, pelas próprias características da infância, estas questões estão em destaque nesse período de desenvolvimento.  É preciso, no entanto, fazer uma distinção entre afetividade e emoção. Muitos misturam os dois conceitos achando que são sinônimos. Na realidade, a afetividade é mais abrangente que a emoção e pode ser expressa de diversas maneiras, principalmente depois da aquisição da linguagem.

A afetividade é a capacidade que o ser humano tem de afetar e ser afetado, tanto pelo mundo interno como pelo externo, por sensações agradáveis e desagradáveis, às quais correspondem os estados de bem-estar e mal-estar. Desde o nascimento, ela faz parte do processo de desenvolvimento da criança e o modo como os adultos lidam com ela afeta muito o desenvolvimento da criança.

Na evolução da afetividade há dois momentos marcantes, resultantes de fatores orgânicos e sociais, com configurações diferentes e resultantes de sua integração: a emoção – é a exteriorização da afetividade, com predomínio da ativação orgânica, isto é, sempre se expressa através do corpo, e o sentimento – é a expressão representacional da afetividade, que surge posteriormente quando a criança começa a falar.

No bebê, a afetividade é expressa através das emoções, principalmente para ter suas necessidades básicas atendidas pelo outro, justamente porque ainda não usa a linguagem verbal, mas através dos gestos e atitudes se comunica com a mãe, estabelecendo entre eles uma comunicação. Assim, a emoção que se expressa pelo corpo, mobilizando o outro, vai ajudando a criança a compreender o mundo ao seu redor e a desenvolver os seus aspectos cognitivos.

Nesta interação a emoção, a cognição e os aspectos motores estão presentes e interligados.  Então, a motricidade faz parte do processo de constituição da pessoa, tornando-se  imprescindível para o desenvolvimento da afetividade e do conhecimento, dando suporte para ambos. É a materialização das emoções, dos sentimentos e do pensamento.

Por isso, se afirmar que o ser visto integralmente, precisa ser visto nesses três aspectos: afetivo, motor e cognitivo. A afetividade, via a emoção, será fundamental nos anos iniciais e prioritária durante toda a infância. Ela é o ponto de partida para que os demais aspectos se estabeleçam e se desenvolvam plenamente.

 

O livro também fala sobre “linguagens expressivas”. Como essas linguagens dialogam com a afetividade e contribuem para o bem-estar das crianças?

Wallon traz um conceito fundamental para a educação, seja ela secular, seja cristã: as emoções que estiveram retidas, guardadas dentro do sujeito, precisam ser escoadas para liberar a aprendizagem. A emoção pode ser um obstáculo para a aprendizagem, mas pode também se tornar propulsora  desta.  Por isso, a representação e a reflexão que ela possibilita, reduzem os efeitos da emoção.

Muitas crianças, mesmo pequenas, enfrentam alguns conflitos, medo e ou insegurança pelo nascimento de um irmão, separação dos pais e ou perda de alguém muito querido.    As linguagens expressivas mobilizam a criança nos seus aspectos afetivos, abrindo espaço para o campo cognitivo e para seu bem-estar.

As linguagens têm dois aspectos básicos: um mais objetivo, ligado a aquisição do próprio conhecimento e às representações concretas da realidade e outro mais subjetivo, ligado à expressão dos sentimentos. Assim, as linguagens expressivas  se tornam tão importantes na articulação  do subjetivo e do objetivo, para que a elaboração indireta dos problemas pessoais ajudem a recuperar a objetividade, caso haja  alguma subjetividade retida. Para tanto, a criança precisa ter a possibilidade de cantar, dançar, desenhar, falar de si, ler histórias que falem de seu mundo interno, representar fatos vividos ou imaginados, colocando suas emoções retidas numa outra esfera, a da representação.

Assim, o desenho pode ser a busca de reprodução fiel de um elemento da natureza, folha, flor ou pássaro, mas pode ser também uma descarga impressionista sobre o papel, liberando algo interno e a pintura, traz na escolha das cores muitos aspectos que podem trazer sentimentos que precisam ser liberados.

A música é capaz de despertar e desenvolver diferentes sentimentos, sensações e disposições, se tornando um meio muito eficiente para a expressão e integração das crianças e a execução de uma coreografia, bem como a participação em jogos e brincadeiras, pode ajudar no escoamento de emoções e da energia retida, que estejam dificultando a concentração da criança. Ao realizar uma experiência teatral de um personagem, pode integrar música, movimento, histórias já conhecidas e brincadeiras, estimulando a criação de cenários, desenvolvendo assim vários aspectos ligadas à expressão corporal e à fala, mas pode também evidenciar conflitos vividos em seu cotidiano.

Em relação à escrita, que é mais difícil de ocorrer nesta etapa, pode ser que seja usada para a narração precisa de um fato ou a reprodução de um texto, mas pode ser também correspondência e confidência de estados internos e por último, a leitura, aparentemente apenas fonte de informações sobre a realidade, pode ser instrumento de catarse pela identificação  com personagens para a expressão das próprias fantasias, tão comuns na infância, mesmo nas idades iniciais.

Na elaboração de um currículo de Educação Cristã para a infância, esses aspectos têm que ser observados. Não se pode, no nosso caso, trazer o conhecimento bíblico  de forma estática, mas trazer toda essa dinâmica para nossas crianças junto com o conhecimento bíblico, oferecendo uma vida plena, digna e saudável em todas as suas dimensões.

 

Como a igreja pode participar desse processo de educação integral das crianças?

A infância é uma fase crucial para a formação de valores, crenças e comportamentos, por isso,   para além do preparo adequado, do uso de materiais que despertem a atenção de nossas crianças, não podemos nos esquecer de suas individualidades, necessidades e dificuldades se quisermos oferecer uma educação integral.

A igreja recebe crianças que passam por sofrimentos internos, por crises e dificuldades. Muitas vezes, apresentam um comportamento muito turbulento e até mesmo agressivo ou, ao contrário, apresentam retraimento e dificuldade em participar das atividades.  Nossas crianças não são diferentes, pois mesmo oriundas de lares cristãos, não estão imunes a estas emoções e sentimentos ligadas à sua afetividade.

Ao se preparar as atividades é muto importante que se cuide dos aspectos objetivos e subjetivos. Muitas vezes queremos a atenção da criança, mas deixamos de lado toda essa subjetividade que é mais intensa em crianças pequenas, principalmente até por volta 6 anos. Podemos cair no erro em pensar em atividades ligadas mais ao conhecimento bíblico, nos esquecendo de fazer isso se preocupando com a educação integral das crianças.

Por exemplo: queremos captar a atenção da criança, nos esquecendo que o movimento é muito importante na constituição da criança. As atividades precisam ser muito bem planejadas para permitir o escoamento de energia sejam através de jogos, brincadeiras e coreografias musicais antes de realizarmos a contação de uma história e depois dela, podemos ainda usar outras linguagens que permitirão não somente a expressão dos sentimentos, mas a apropriação da lição planejada. É um desafio possível!

Outra questão importante é que também precisamos cuidar de nossos professores, que também atravessam desafios pessoais.  È preciso acolher e trazer uma formação que permita que o professor também cresça na fé, no entendimento e no agir junto às crianças. A igreja precisa estar atenta aos professores!

 

Em tempos de tanta pressa, estresse e sobrecarga, como a educação pode contribuir para o bem-estar, não só das crianças, mas das famílias?

Vivemos tempos em que a família enfrenta dificuldades em permanecer e em conviver, sendo muitas vezes substituída pela escola em tempo integral e pelo uso de telas cada vez mais precocemente, seja a TV, o celular e até mesmo tablets. O diálogo, as brincadeiras, os jogos e o contato com a natureza são cada vez mais raros.

Assim, a luta pela sobrevivência e a falta de tempo consome nossas famílias e na igreja, isso também não é diferente. No entanto, nossas famílias podem ser orientadas para uma educação mais integral e nossos pais podem ser convidados a participar desse processo, fazendo atividades complementares àquelas realizadas aos domingos. A educação cristã não pode ser restrita à igreja!

No entanto, eles também precisam ser orientados como e porque fazer. É importante a participação deles nesse processo, para possam compreender a realização dessas atividades, não apenas como algo complementar, mas como uso de tempo de qualidade com os filhos, contribuindo assim para o bem-estar das crianças e o aprofundamento da educação realizada na igreja.

 

Há uma dimensão espiritual nesse cuidado com o bem-estar emocional e afetivo? Como a senhora enxerga essa relação?

Se a infância é uma fase crucial para a formação de valores, crenças e comportamentos, é fundamental que as crianças tenham uma base sólida em sua vida espiritual desde cedo. Podemos fazer isso, acolhendo, integrando e compreendendo as crianças em suas características individuais.

A dimensão espiritual traz muitos benefícios para as crianças, como a capacidade de lidar com emoções, a construção de relacionamentos saudáveis e a busca por propósito e significado na vida, paralelamente aos aspectos afetivos.  Um trabalho realizado que veja a criança em sua integralidade abre espaço não apenas para a educação integral, mas ao desenvolvimento da empatia, compaixão e solidariedade, valores essenciais no nosso mundo. Se criança tiver espaço para se expressar esses valores serão mais facilmente incorporados a sua vida, possibilitando uma espiritualidade mais saudável.

 

O que a motivou escrever esse livro? Ele nasce de uma experiência vivida?

Fui convidada a escrever o livro por uma ex-aluna do curso de Psicopedagogia que tendo uma editora, sentia falta de um trabalho que aliasse teoria e prática dentro dessa temática. É uma temática muitas vezes abordada no curso, pois ela traz uma vivência real.

Durante meu mestrado em Educação encontrei uma menina que tinha vários problemas emocionais que a deixavam muito agressiva com os colegas, demais pessoas ao seu redor e, em alguns momentos, consigo mesma.

Terminando as disciplinas do mestrado da FEUSP pude participar do curso sobre Henri Wallon, sendo desafiada a escolher um dos campos funcionais. Lembrei-me da menina e logo, pensei: ali tem algo a ser trabalhado e escolhi pesquisar sobre a afetividade.

Não sabia bem o que fazer, mas com as orientações do curso, passei a trabalhar em conjunto com a professora. Fomos usando várias linguagens expressivas e logo descobrimos que para aquela menina, o desenho, a leitura de contos e a escrita podiam fazer diferença em seu comportamento. Os episódios de agressividade foram diminuindo à medida que ela conseguia se expressar. Seu olhar duro, pronto para enfrentar o mundo, foi dando lugar para uma menina mais meiga. Foram dois anos de acompanhamento quinzenal e a sua história tornou-se minha dissertação: “Emoção e escrita: fios que se unem numa mesma trama”.

O convite para escrever o livro veio com um foco: escrever para professores da Educação infantil, que precisam se instrumentalizar diante da subjetividade presente nesta etapa do desenvolvimento. Foi um desafio, principalmente, quando tive que abordar as linguagens expressivas para bebês e crianças muito pequenas, com as quais tinha menos experiência.

Somou-se a isso uma experiência que tive com um trabalho realizado na igreja com crianças carentes da periferia há mais de 20 anos. Chegamos a atender mais de 140 crianças e adolescentes com os mais diversos problemas, sejam materiais, afetivos e espirituais. Era uma turbulência muito grande e muitas vezes, eu e os demais professores não sabíamos como agir, buscando no Senhor a orientação para o trabalho. Acertamos algumas vezes e erramos em outras. Acredito que se, naquela época tivemos conhecimento da importância das linguagens, que até usávamos, mas não de forma tão organizada, o trabalho teria sido mais fácil.

Trabalhei no ministério infantil por muitos anos e sou apaixonada por ele. Comecei muito cedo, sem nenhuma orientação. Aprendi fazendo, mas sei que poderia ter feito melhor se tivesse tido um acompanhamento e uma formação mais próximos.

Com certeza, todas estas experiências estão implícitas no livro que escrevi, trazendo minhas inquietações de pesquisadora, de professora e de aprendiz.

 

Que mensagem você deixaria para educadores cristãos e lideranças que trabalham com a infância nas igrejas?

Diante da sobrecarga e do estresse, temos deixado de lado nossas EBDs, mas a educação cristã deve ocupar um lugar central na vida da igreja.  Muitas vezes precisamos fazer adequações de horário e de espaço, mas não podemos deixar de lado esse ministério essencial.

Ensinar é mais do que uma função: é um chamado. Nosso modelo é o próprio Jesus que não apenas pregava, mas ensinava com amor, proximidade e intencionalidade. Sempre olhava afetuosamente para seus discípulos e para a multidão, com firmeza, mas com amor, sempre respeitando as necessidades de cada um.  Ele os conhecia e por isso, os olhava como pessoas únicas. Nós também precisamos aprender isso e conhecer realmente nossas crianças se quisermos fazer a diferença na vida deles. As linguagens expressivas podem nos dar pistas reais e com a orientação do Senhor, poderemos encontrar caminhos que estiverem mais obscuros.

Para promover uma vida plena, digna e saudável em todas as suas dimensões: espiritual, emocional, comunitária e educativa não podemos descuidar da formação de nossos educadores. Precisamos olhar para eles se quisermos que eles possam olhar para nossas crianças, transmitido não apenas conhecimento bíblico, mas também valores, identidade e espiritualidade.

O desafio está posto! Que o Senhor nos ajude nessa missão!

 

Foto de Sheila Amorim

Sheila Amorim

Jornalista e diagramadora de O Estandarte, membro da IPI de Cidade Patriarca, São Paulo, SP

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Uma resposta

  1. Seu trabalho sempre dedicado a Deus, à educação, à educação cristã, nos inspira a sermos educadores mais conscientes e buscar no chamado de Jesus Cristo nossa força e motivação para ajudar crianças, jovens e adultos a se achegarem a Cristo, entendendo suas emoções e conflitos intermos. Te admiro muito, minha querida mãe!

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